Arautos do Evangelho venderam a "igreja" em praia paulista
ao um grupo que poderá transformar o local em hotel
por Diego Zanchetta, do Estadão
Um castelo em estilo medieval construído em uma das praias mais isoladas de Ubatuba, no litoral norte paulista, tem aguçado a imaginação de pescadores e despertado a ira de ambientalistas. Com quase 9 mil m² de área construída, a propriedade fica ao lado da paradisíaca Praia do Pulso, cercada por Mata Atlântica e mar azul.
Mas, para erguer o empreendimento, o grupo católico Arautos do Evangelho não precisou de licença ambiental: o palácio foi classificado como "igreja", o que livrou os responsáveis pela obra de pedir qualquer autorização à Companhia Ambiental do Estado (Cetesb).
Indignados, moradores da região moveram uma ação civil pública que pedia ao Ministério Público Estadual a demolição do imóvel. Mas o castelo, que estava misteriosamente fechado havia quase um ano, acabou vendido para um grupo do mercado imobiliário americano.
Com mais de cem cômodos e torres com guaritas, o lugar está em obras. Ninguém sabe dizer ao certo o que será feito ali.
Na prefeitura de Ubatuba, a obra consta como "ampliação de instalação religiosa" e ainda pertence ao grupo católico. Mas não é isso o que os funcionários dizem. "Aqui é agora uma propriedade particular, não é mais dos padres. No momento adequado, os americanos vão divulgar", diz o funcionário responsável pela obra, que pediu para não ter o nome divulgado. "Não podemos falar sobre o que vai ser aqui com ninguém."
Outro mistério para os poucos moradores vizinhos e donos de casas de veraneio, todos acostumados a respeitar severas regras impostas pela Polícia Ambiental, é como alguém conseguiu autorização para construir um castelo em um dos pedaços mais preservados de Ubatuba, ao lado da Fazenda Caçandoca. Trata-se de uma região quilombola tombada pelo patrimônio histórico nacional.
O que agora pode até virar um resort ecológico com 20 bangalôs, segundo uma das versões apresentadas por funcionários da obra, nasceu das brechas que existem atualmente na legislação ambiental. Para a construção de igrejas e escolas públicas, não existe a necessidade de autorização prévia de órgãos ambientais do Estado.
Reconhecidos como ordem religiosa pelo Vaticano, os Arautos do Evangelho só tiveram de pedir uma autorização para construção de um templo ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico (Condephaat), em 2004. O grupo assinou um termo de responsabilidade com o órgão, assumindo o compromisso de manter intacta a área verde nativa. A Secretaria de Meio Ambiente e a Cetesb não precisaram ser consultadas.
E assim nasceu o castelo, como igreja, apesar de seus enormes portões com 8 metros de altura nunca terem sido abertos a ninguém que não fosse integrante dos Arautos do Evangelho, uma dissidência ultraconservadora da ala Tradição, Família e Propriedade (TFP) da Igreja Católica. Os padres venderam há dois anos o imóvel para os americanos da Sunrise Homes International, um grupo que constrói casas para estudantes em Santa Bárbara, na Califórnia.
Se quiserem fazer um hotel no local que era, na verdade, para ser uma "igreja", os americanos também não vão precisar consultar os órgãos do governo estadual, pois esse tipo de empreendimento é liberado pela prefeitura de Ubatuba. O zoneamento municipal permite um empreendimento hoteleiro naquela área.
Desde que o castelo foi aberto, em 2005, a Polícia Ambiental nunca constatou nenhuma irregularidade. "Mas eles cortaram muito da mata. Só que todos os guardas sempre fecharam os olhos para o que eles fazem", acusa o pescador Adilson da Silva, de 32 anos, que leva turistas para passear de escuna a partir da Praia de Maranduba.
Desde que o castelo começou a ser construído, a Cetesb abriu cinco procedimentos para penalizar condôminos da Praia do Pulso, o loteamento bem ao lado do castelo, por infrações cometidas em áreas de preservação. "E, mesmo assim, deixaram erguer um castelo de arquitetura horrorosa no meio da floresta", reclama a dona de casa Lucinda Cano, de 51 anos, proprietária de um imóvel no local.
Religiosos têm outros 4 centros
O castelo em Ubatuba foi o quinto erguido pelos Arautos do Evangelho no meio de áreas de preservação do Estado. Em 2008, a reportagem do Estado mostrou que o grupo conseguiu licenças da Cetesb e do Departamento de Proteção aos Recursos Naturais (DPRN) para construir três castelos no meio da Serra da Cantareira, em áreas de preservação.
O maior de todos está na Estrada de Santa Inês, no limite entre São Paulo e Mairiporã, e tem 96.176 metros cercados por nascentes e floresta nativa.
Um internato com colunas em estilo medieval também foi erguido do lado de uma área de preservação permanente em Embu das Artes, na Grande São Paulo. A arquitetura de todos os palácios é a mesma, com colunas no estilo ítalo-provençal.
A prefeitura de Ubatuba informou que as obras no castelo foram liberadas como "ampliação de instituição religiosa". Para o governo municipal, a propriedade ainda pertence aos Arautos do Evangelho, apesar de uma placa nos portões indicar o nome do grupo americano Sunrise Homes International como novo dono. A Secretaria de Obras da cidade adiantou, porém, que a Lei de Zoneamento permite a transformação em hotel.
Um funcionário responsável pela obra no palácio disse ao Estado que em breve o grupo americano vai divulgar o que será feito no local. "As licenças nós já conseguimos na prefeitura." O grupo americano Sunrise Homes International e os Arautos do Evangelho foram procurados, mas não responderam.
A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) informou que não precisou ser consultada para a construção do castelo porque o imóvel foi classificado na categoria "igreja". O órgão também ressalta que o terreno não é classificado como área de preservação permanente - apesar de estar em um topo de morro cercado por Mata Atlântica e de vizinhos terem relatado derrubada de mata nativa.
"Isso tudo era uma mata onde está o castelo. Agora não sei o que vai ser, não", conta o carteiro Silas Fileto, de 42 anos, que também é coordenador de uma associação de observadores de pássaros do litoral norte.
Para a coordenadora da Fundação SOS Mata Atlântica, Marilu Ribeiro, o dano causado à paisagem precisa ser revertido. "Foi usado um subterfúgio para construir sem licença. Quando o imóvel perdeu a função de igreja, a função social, deveria perder a licença", disse. "Os muros, que impedem o acesso das pessoas, deveriam ser retirados e substituídos por uma espécie de cortina verde, com vegetação."
Enquanto o castelo é convertido em hotel, os pescadores da Praia de Maranduba, do lado do empreendimento, esperam há três anos e meio licença do governo estadual para fazerem a dragagem do rio que dá acesso ao mar. Enquanto não conseguem, eles precisam puxar seus barcos nas partes rasas do manancial com a ajuda de âncoras ou mesmo no braço, com a água pelo peito. "Para nós, pescadores, as coisas são sempre mais difíceis", relata Maurício de Souza, o Azulão, de 61 anos.
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